1 – TRANSDISCIPLINARIDADE

A ética que baliza o programa Nossa Escola é em Todo Lugar se ancora nas seguintes considerações:
“A formação do aluno jamais acontecerá pela assimilação de discursos, mas sim por um processo microssocial em que ele é levado a assumir posturas de liberdade, respeito, responsabilidade, ao mesmo tempo em que percebe essas mesmas práticas nos demais membros que participam deste microcosmo com que se relaciona no cotidiano.” (GALLO, 2000, p.20)
Com uma proposta de trabalho transdisciplinar, tentamos resistir à lógica fragmentária da realidade – dividida
em cada vez mais especialidades que não dialogam – pois, “(…) nosso ensino – também fragmentado – não fala da vida, que é multiplicidade articulada, mas de um cenário irreal, onde cada saber tem o seu lugar e não se comunica com os demais.”(GALLO, 2000, p.25). A aposta é que não sejamos barreiras para as crianças, pois uma “das primeiras barreiras na educação das crianças – e certamente uma das mais difíceis de ser transposta – é essa percepção intuitiva e muitas vezes inconsciente da multiplicidade do real, que elas precisam abstrair para assimilar a compartimentalização de saberes que lhe é imposta por nós, professores. Se, no lugar de partirmos de racionalizações abstratas de um saber previamente produzido, começarmos o processo educacional na realidade que o aluno vivencia em seu cotidiano, poderemos chegar a uma educação muito mais integrada, sem dissociações abstratas; à parte a nova filosofia de educação que implica essa postura e mesmo a nova visão de mundo que ela suscita., também experimentaríamos, com essa postura pedagógica, uma sensível melhoria no aproveitamento e rendimento dos alunos, pois aquela barreira intuitiva não mais precisaria ser ultrapassada.” (GALLO, 2000, p. 37-38)
(Transversalidade e educação: pensando uma educação não disciplinar – Sílvio Gallo)

2 – ANÁLISE E CO-GESTÃO DE COLETIVOS

“O desafio de construir um método que simultaneamente analisasse e lidasse com a produção de coisas e de
pessoas . O objetivo desse trabalho: isto. Repensar o significado e o modo como se organiza esse trabalho.
Entendê-lo com uma dupla finalidade: produzir bens e serviços necessários ao público, mas também cuidar da
constituição do sujeito e dos coletivos. O trabalho significando não somente um meio para assegurar sustento
material, mas também implicado com a própria constituição das pessoas e de sua rede de relações: equipes, grupos, organizações, instituição e sociedade. Um esforço de crítica e de síntese. Uma crítica às concepções dominantes sobre modos para analisar e gerir o trabalho em equipe. A ideia de que a gestão é uma tarefa coletiva – sistemas de co-gestão – e não somente uma atribuição de minorias poderosas ou de especialistas.
O exercício do co-governo dependente da produção simultânea de espaços coletivos que cumpririam três finalidades básicas:
– uma clássica , de administrar e planejar processos de trabalho objetivando a produção de valores de uso;
– outra de caráter político, a co-gestão como uma forma de alterar as relações de poder e construir a democracia em instituições;
– e ainda uma pedagógica e terapêutica. A capacidade que os processos de gestão tem de influir sobre a constituição de sujeitos. Essa potência específica da co-gestão de influir sobre a produção de subjetividade será denominada nesse trabalho de fator Paideia. Os Espaços Coletivos também como lugar de reflexão crítica, produção de subjetividade e constituição de sujeitos.” (Campos, 2000).
(Análise e cogestão de coletivos Organizados – Gastão Wagner Campos)

Esse conceito fornece a ancoragem para a oferta e a sustentação de processos de formação crítica e de cuidado que o programa propõe. Um dos primeiros desdobramentos dessa postura foi a criação de uma série de dispositivos que coletivizaram a gestão, como as assembleias comunitárias, a criação de um grupo técnico gestor e de um coletivo co-gestor, composto por adolescentes e jovens que assumiram compromissos e
responsabilidades com o planejamento, a execução e o monitoramento do plano de trabalho da instituição. Desde então, a cogestão produziu uma série de outras experiências que democratizaram a gestão institucional, bem como produziram e apoiaram uma série de outros coletivos externos, mas em diálogo com o Camará, como o Coletivo Maria das Marés, os NUCAS e o Coletivo Crianças Camaradas.
O conceito de Espaços Coletivos está na base e dará sentido às experiências de análise e tomada de decisões:
reuniões de planejamento, assembleias, participação em conselhos de políticas públicas, audiências públicas e
manifestações, todos estes espaços se articulam e dialogam para que a gestão permaneça coletiva.

3 – EDUCAÇÃO ENTRE PARES

“Como o próprio nome já sugere, a educação entre pares é um processo em que adolescentes e jovens atuam como facilitadores(as) de ações e atividades com e para outros(as) adolescentes e jovens, ou seja, os pares. Este termo veio do inglês “peer education” e é utilizado quando uma pessoas fica responsável por desenvolver ações educativas voltadas para o grupo do qual faz parte.
Quando se propõe um modelo de aprendizagem como esse, a idéia é que serão os(as) próprios(as) adolescentes e jovens os(as) responsáveis tanto pela troca de informações quanto pela coordenação de atividades de discussão e debate junto a seus pares. As razões para se optar pela educação entre pares são muitas. A primeira delas, e mais “óbvia”, é que adolescentes e jovens conversam “de igual para igual” com seus pares sobre diferentes assuntos, incluindo sexualidade, gênero, saúde sexual e saúde reprodutiva, HIV e AIDS, entre muitos outros temas. Outro motivo importante é que, eles e elas têm como base a própria comunidade em que vivem. Sendo assim, conhecem a realidade dos(as) outros(as) adolescentes mais próximos da cultura local. (Adolescentes e Jovens para a Educação entre Pares: Sexualidades e Saúde Reprodutiva – Brasil, Ministério da Saúde, 2011).
Dar lugar institucional para a educação entre pares potencializa o vínculo e o envolvimento do jovem frente ao programa e à suas comunidades, provoca a participação e os insere em lugares de experimentação política.

4 – PEDAGOGIA DA PRESENÇA

PRESENÇA: UMA NECESSIDADE BÁSICA
“É crescente, entre nós, um número de adolescentes que necessitam de uma efetiva ajuda pessoal e social para a superação dos obstáculos ao seu pleno desenvolvimento como pessoas e como cidadãos. O primeiro e mais decisivo passo para vencer as dificuldades pessoais é a reconciliação do jovem consigo mesmo e com os outros. Esta é uma condição necessária da mudança de sua forma de inserção na sociedade. Não se trata,
portanto de ressocializar (expressão vazia de significado pedagógico) mas de propiciar ao jovem uma possibilidade de socialização que concretize um caminho mais digno e humano para a vida. Só assim ele poderá desenvolver as promessas (as possibilidade) trazidas consigo ao nascer”. (Costa, 1991).
(Pedagogia da Presença – Antônio Carlos Gomes da Costa)

Com essa reflexão, o educador e dirigente Antônio Carlos Gomes da Costa inicia o texto que se tornou celebre e tem sido reconhecido como referência conceitual para as práticas educativas com crianças e adolescentes que vivem em contextos e territórios vulnerabilizados.
Em nossa trajetória, ao longo de 25 anos de existência, em diversas ocasiões compartilhamos com Antônio
Carlos a angústia de enfrentar situações tão complexas com tão poucas condições objetivas, tanta incompreensão da sociedade e tamanha ausência do Estado na regulação dos processos econômicos que produzem desigualdade e injustiça social. Adotar a Pedagogia da Presença em nosso projeto, significa reconhecer a importante contribuição desse educador e de alguma forma, homenageá-lo.

5 – O MÉTODO DA RODA

“Um método inspirado na roda com que os pedagogos construtivistas iniciam o dia de trabalho nas escolas. E
também na roda de samba, na do camdomblé e na da ciranda em que cada um entra com sua disposição e
habilidade sem desrespeitar o ritmo do coletivo. O Método da Roda: A roda como espaço democrático, um modo
para operacionalizar a co-gestão. Mas também a vida girando e se movimentando, sempre: a roda”. (Campos, 2000).
Acreditamos e reconhecemos a potência que a Roda trás para a disposição dos nossos encontros. É mais do que uma organização geográfica, mas cartográfica, afetiva, de disponibilidade para o encontro. A roda está presente na abertura e no fechamento de todos os encontros realizados com o nosso coletivo, quando ela em si só já não é toda a atividade. A abertura da roda coloca em movimento as produções e as expressões das vidas que convivem e experimentam outros mundos conosco. A roda é dispositivo de cuidado e de gestão, é princípio político e metodologia, é a disponibilidade para que as forças e os fluxos que compõe as violências e as violações sejam colocadas no centro e desembaralhadas pela atuação de todos os membros, na coletivização e no fortalecimento de nossas ações e produções. O método da roda é uma convocação para a presença.

6 – CONVIVÊNCIA E CUIDADO

“Fortalecer as crianças, apresentar uma nova maneira de se relacionar com o mundo, muitas vezes coloca a criança em conflito com seu mundo afetivo, o qual, por mais violento e desestruturado que seja, é o mundo que ela conhece e gosta. (…) Aos poucos, a liberdade de escolha entre várias atividades ou a simples não atividade, a possiblidade de viver uma atrapalhação natural de sua história sem ser reprimida ou julgada por atos desconexos, levam a criança a se envolver com o fazer. Começa aí um trabalho de escolha, de concentração, de coordenação motora, de se mostrar no trabalho feito, nas dificuldades e no imenso orgulho e satisfação(…). Sim, aqui as crianças constroem e ocupam um novo espaço.” (Ateliê Acaia, 2003)

Reconhecemos, a partir do trabalho desenvolvido pelo programa e na história do Camará, o valor da convivência como estruturadora de processos internos que permitem às crianças e adolescentes se libertarem de seus medos e inibições e se apresentarem com suas possibilidades.
“Recebemos a criança e mais do que nos preocuparmos com ideias pré-concebidas sobre como deve ser a vida
saudável de uma criança, temos que olhar e nos abrir para aquele menino e aquela menina que está batendo à
nossa porta. É preciso cuidado ao julgar as atitudes dos meninos e meninas e resistir ao primeiro impulso de utilizar parâmetros distantes da realidade dessas crianças, realidade que só conheceremos se ficarmos de olhos e ouvidos bem abertos”(Ateliê Acaia, 2003)
Um olhar atento, uma escuta atenta e a abertura para o outro. A proposição de estar inteiro para uma proposta de experiência. Experiências que sejam coletivas, ao passo que reconheçam singularidades e potencializem sujeitos não subalternizados. Condições para uma convivência que queremos promover.
“Cuidar não é somente oferecer um serviço guiado por um sentido moral ou por um interesse qualquer, mas também se emocionar com o outro, com sua presença como momento de renovação do ritualismo da vida” (Campos , 2000)

7 – EDUCAÇÃO EM MOVIMENTO

“Quem sabe isso quer dizer amor. Estrada de fazer o sonho acontecer” (Milton Nascimento)

A linguagem do movimento e o movimento da linguagem estão numa profunda relação dando lugar a novas
significações. Não é apenas um jogo de palavras, o sentido de um está diretamente implicado no do outro. A partir desta implicação se torna importante num contexto educacional seguir em busca de novos caminhos que
complementem um trabalho de educação através do movimento. Um trabalho interdisciplinar onde a linguagem seria o ponto fundamental do processo pedagógico, no sentido de abrir horizontes simbólicos e ampliar possibilidades de comunicação para os sujeitos conhecerem e compreenderem os contextos a sua volta, e se reconhecerem como parte dele, trazendo o poder criador das experiências, que se traduz nas suas próprias expressões, levando-os à perspectiva relacional de diálogo e de troca.
As Expedições Culturais e as Viagens de Formação são momentos propícios para a experimentação da ideia de educação em movimento. Partimos em busca de aventuras e novas aprendizagens. Tempo, espaço e experiência – fundamentos do conceito de educação integral – são conectados para produzir novo saberes, a partir das histórias de cada viajante. Cada local que visitamos aporta novos conhecimentos e descobertas.

8 – EDUCAÇÃO SOCIAL DE RUA

” O movimento pela educação popular vem, desde meados da década de 1990, ocupando espaços na sociedade e na comunidade acadêmica. Seus antecedentes históricos incluem outro movimento pedagógico, com protagonismo das ciências humanas: a Educação Social de Rua (ESR) , que constitui marco importante na história da pedagogia social no Brasil. O campo de conhecimento avançado pelos educadores sociais de rua, a partir do final da década de 1970, apresenta construções conceituais e uma práxis que se revelam , mais que nunca, atuais.” (Oliveira, 2007).
(Educação Social de Rua – Walter Ferreira de Oliveira)

Sendo a escola em todo lugar, a rua se torna espaço fundamental para a circulação e a produção de experiência formativas e de cuidado. Seja com pessoas em situação de rua ou não, temos na história e nos princípios da Educação Social de Rua referência principal para pensar o sentido do programa e de todas as ações, que se manifestam na ocupação de espaços designados ou não para crianças e a necessidade de pensar em como a cidade se configura e pode vir a aceitar a circulação de crianças e adolescentes em seus mais variados espaços.

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