Em 2009 eu comecei uma jornada, que acho que nunca irá terminar. Não nessa vida. Este foi o ano em que iniciei as sessões de terapia, com uma profissional de psicologia. Eu estava em um processo de depressão muito grande, e também, perdida quanto minha carreira profissional. Eu tinha 27 anos. Durante este ano, as sessões falavam muito sobre a minha infância, e coisas que aconteceram que me marcaram e me transformaram em quem eu era em 2009. Foi então que comecei a mexer, não sem dor, em uma situação específica que vivi aos 08 anos: a luta e ativismo dos meus pais e de um grupo grande de pessoas frente a um tema chamado Luta Antimanicomial. Bem resumidamente, a Luta Antimanicomial foi, e é, um movimento social e político onde se pensa sobre os manicômios e a importância, ou não importância, deles. Antes desta luta existir e tomar corpo, muitas pessoas no mundo passavam pela seguinte situação: estavam em sofrimento psíquico, eram diagnosticadas com alguma “doença mental”, e então, eram enviadas aos manicômios. Nestes lugares, as pessoas eram tratadas com muitos medicamentos, eletrochoque, eram impedidas de viver na sociedade, pois acreditava-se que eram perigosas. Ficavam em casas imensas, junto com outras pessoas também tidas como “doentes mentais”, sendo acompanhadas por profissionais que acreditavam que elas deveriam ficar trancadas, as vezes amarradas, tratadas como “bicho perigoso” ou algo assim 🙁 Essas pessoas não tinham convívio em sociedade, não saíam para passear, não podiam fazer trabalhos artísticos, enfim… achava-se que eram pessoas tão perigosas, que não deveriam ter direito a nada que as trouxesse alguma humanidade. Muito triste!! Mas, fato é que eu estive presente, aos 08 anos, quando um grupo de pessoas se reuniu e decidiu estudar e pensar maneiras de tratar as pessoas tidas como “doentes mentais”, como pessoas, de forma humana, e não como animais perigosos. Meus pais estavam lá, e eu também, diversas vezes. Desde pequena, sabia que as pessoas todas, independente de sua cor, classe social ou gênero, deveriam ser tratadas de forma humana. O que é ser tratado de forma humana? em minha visão, é tratar gente como gente: com dignidade, direito e acesso a cultura, direito de pensar seus direitos, participar das tomadas de decisões dentro de um país. É ter direito a saúde, amor, alimento, amigos, é ter direito a passear, viajar, conhecer pessoas e lugares novos. Tudo isso é humano e todas as pessoas deveriam ter acesso a isso, segundo o que aprendi e vivi. Bom, mas eu vim aqui pra contar do Projeto Camará, e onde ele entra nessa historia? Ah, na verdade ele já estava nessa historia! Quem conhece o Camará, sabe que a luta é bastante parecida com o que descrevi no parágrafo acima. Os fundadores do Camará estavam junto dessas pessoas que pensavam formas humanas de viver! E foi assim que o Camará nasceu. Mas, meu encontro com o Camará especificamente aconteceu só aos meus 27 anos. Como disse lá no inicio do texto, eu estava em terapia, e queria conhecer mais sobre mim, minha história, e foi isso o que me levou até o Camará. Eu queria entender mais da minha vida, e isso passava por entender o que a Luta Antimanicomial construiu. O que eu não imaginava, é que a minha ida ao Camará pela primeira vez, em uma tarde de agosto de 2009, transformaria totalmente minha forma de ver minha profissão, e mais ainda, me traria uma nova formação profissional. Eu já era formada em jornalismo, mas na faculdade fui apresentada apenas ao “jornalismo de massa”, esse Jornalismo que vemos nos telejornais, ou então os jornais impressos que saem todos os dias e vão para as bancas de jornal. Aprendi a fazer textos para estes veículos. E não me vi em nenhum deles. Achava que jornalismo era só isso e que, então, essa profissão não era pra mim. Fui dar aulas de inglês (o que faço até hoje), pois sempre amei educação. No primeiro momento em que estive no Camará, fui recebida por Lumena Teixeira, uma das fundadoras do Camará, e Maria Fernanda Portolani, também formada em jornalismo, e era educadora em um projeto que estava em andamento por lá. O nome do projeto era Comunidade em Cena. Fui muito bem recebida, fizemos uma reunião entre nós três, e então elas me explicaram o que era o Projeto, e me convidaram para acompanhar em alguns dias da semana. O primeiro dia em que fui acompanhar o projeto, com os adolescentes, eu não vou me esquecer nunca mais! Era um programa de TV feito pelos adolescentes, com mediação de alguns educadores. Mas antes de acontecer o programa em si, houve uma roda de conversa imensa, ocupando todo o salão. Uma reunião de pauta com crianças, adolescentes, e eles pensavam o que queriam falar. E queriam trazer a realidade das suas comunidades. Queriam trazer o que era presente no dia a dia deles. Ali, eu já estava completamente encantada pela proposta! Depois de 4 anos estudando na faculdade “regular” de jornalismo e ver que não queria nada daquilo, eu havia encontrado um projeto onde dava-se voz a quem não tinha nesses grandes veículos de comunicação. E era isso o que eu criticava, e não me identificava. Só pra contextualizar: na faculdade de jornalismo, eu precisei fazer um estágio em televisão. Fiquei algumas semanas como produtora de um programa diário de notícias da região. Um certo dia, eu percebi que pediram para eu “mudar as informações”, ou seja… mentir. Foi assim que ouvi e senti na época, e foi ali que decidi que não iria trabalhar com isso. Afinal, que sentido tem, ser jornalista e mentir? com a intenção de ter mais pessoas assistindo… a troco de quê? Nunca aceitei as informações sendo manipuladas daquela forma. No projeto Comunidade em Cena, tudo isso era discutido com crianças e adolescentes: a manipulação da mídia, os donos dos grupos jornalísticos do país, politicas publicas para a comunicação… através dessas rodas de conversas conheci grupos como o Intervozes, e a ONG Cala Boca já Morreu, onde fui mais tarde fazer parte de um grupo de estudos sobre Educomunicação. Me envolvi muito com o assunto, e descobri que toda minha vivência com a Luta Antimanicomial, que antes eu achava que só atrapalhava minha vida, me tornava alguém mais conhecedora das causas pelas quais essas pessoas lutavam. Entendi, como se estivesse sempre ali, que aquelas pessoas estudavam, discutiam, formavam jovens para que pudessem construir um mundo menos ligado ao capitalismo e mais ligado às pessoas. Daí em diante, minha busca não parou mais… o Camará, eu brinco, foi quem botou o “bicho do questionamento” em mim. Decidi estudar pedagogia, pois vi a importância que tem falar sobre tantas coisas com crianças. Elas aprendem desde cedo a ter pensamento crítico. Aprendem que, o que elas falam, tem importância sim. “Cala Boca Já Morreu”. Elas também têm, e muito, o que dizer! E nós, educadores, não somos os detentores do conhecimento como na escola tradicional. Somos mediadores. E aprendemos demais no processo, que nem sempre é fácil. Mas, sempre, transformador. Fui fazer meu estágio de pedagogia no Camará, em 2016. Aí eu já era mãe, e minha filha tinha 4 anos. Ela participou comigo das atividades do Instituto, e hoje vejo que questiona as coisas, que quer estudar, saber mais sobre tudo. Vejo que o Camará também plantou nela o “bichinho do questionamento”! Risos.No mesmo ano de 2016, estagiando no Camará e participando dos projetos, uni minhas duas formações em um projeto muito especial. Um documentário que contava a historia dos 20 anos do Camará – “Companheiros de Luta”. Feito juntamente com os jovens do instituto, pensado e gravado por eles também. Foi uma experiência riquíssima, onde além de aprender mais ainda como profissional, ganhei grandes amigos. Estar no Camará é se transformar a cada experiencia. É um movimento constante. Como a vida é. Bem, essa é só uma parte de uma imensa historia, que é a do Instituto Camará Calunga. São 23 anos de intenso trabalho. Sou grata demais pela partilha! E ela continua 😉
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